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sexta-feira, 3 de março de 2017

PEGANDO O JACARÉ PELO RABO (ou: O PESO DE PAPEL TEM OUTRA FUNÇÃO)

Quando ainda era menor de idade, lá pelo início dos anos 60, menores podiam trabalhar para empresas da iniciativa privada, auferindo alguma ajuda para a manutenção de suas famílias.
Com os Carvalho não era diferente. Meu irmão mais velho "trampou" muito tempo entregando compras de armazém em bicicletas dotadas de caixotes na garupa. Era empregado da então Casa Brasileira, onde hoje funciona uma importante loja de rede especializada em não dar trocos de R$ 0,01.

Por algum tempo, ainda no Alto do Tabaú, trabalhei para uma vizinha que fabricava curau, cremes de maisena com sabor de groselha, imitações de manjar e pirulitos de açúcar colorido.
Nessa época, eu descia o morro para ir até o campo da Ferroviária, vender o que fosse preciso.
Minha experiência já vinha de quando morávamos em Taubaté. Papai era padeiro e mamãe, além de cuidar dos filhos, produzia pastéis e croquetes para vendermos no campo do Juta, bem próximo à nossa casa.

Desse tempo trago na lembrança o dia no qual busquei ficar atrás da rede de um dos gols, sentado sob uma árvore, vendendo meus pastéis e croquetes. Para mim, era o lugar mais seguro, onde jamais uma bola atingiria minha cestinha...
Engano meu. Um ponta esquerda (naquele tempo era assim chamado o camarada que ocupava a mesma posição de atacantes famosos como Pepe, o canhão da Vila, e Zagalo) errou o “tiro a gol” e a bola, ainda de capotão grosso e pesada, não acertou também a cestinha de pastéis.

Não tive tempo para me desviar do ponto negro e veloz que cresceu diante de meus olhos. Quando acordei, pessoas me chamavam por “padeirinho”, indagando se eu estava ouvindo.
Ouvia sim... Um zumbido, vozes, alguém avisando para ajuntarem o dinheiro do “padeirinho”. Lavei um banho d'água fria, pois o massagista do time estava perto e prestou os primeiros socorros...
Continuei vendendo os produtos caseiros, mas sem me proteger atrás dos gols...
Depois de muitos pirulitos vendidos em Pinda, trabalhei uns tempos com o padeiro pai, ajudando-o nas madrugadas.

Com o tempo, o querido velho descolou um emprego na Farmácia Nossa Senhora do Bom Sucesso, do Ny.
Foi nessa época que aprendi a pegar o jacaré pelo rabo.

Era um trabalho fácil, mas exigia atenção. Para isso, eu precisava, primeiro, ajudar a preparar algumas fórmulas de medicamentos, desenvolvidas pelo admirável senhor Raul, farmacêutico oriundo da nossa Escola de Pharmácia.
O doutor Raul escrevia as fórmulas. Ensinou-me a pesar os componentes em pó, medir os líquidos, sempre com a recomendação de higiene máxima e cuidados com o manuseio dos instrumentos e aparelhos, inclusive a balancinha com base em madeira e uma gavetinha onde eram guardados os pesos em gramas.

Eu torcia para ter alguma receita para ser manipulada no graal, uma espécie de taça de pedra com um bastão utilizado para moer matéria-prima sólida, pulverizando-a.
Depois de as fórmulas prontas, era preciso providenciar a embalagem. Os pós eram embalados em minúsculos envelopes, em cápsulas de gelatina ou de amido.
E os líquidos? Xaropes, poções antigripais, purgantes (um era o tal de óleo de rícino!) eram colocados em frascos esterilizados, arrolhados e, ainda, recebiam uma capa de papel impermeável plissado (Lembram-se das saias das colegiais de antigamente? Era preciso dar essa aparência ao papel colocado sobre a rolha, finalizando-se a embalagem com algumas voltas de cordoné (um barbante forte), pelo menos três nós e uma gota de lacre para garantir a embalagem realmente fechada.

Nessa tarefa toda, o destaque dado por doutor Raul era imprescindível: não deixar a rolha solta, com folga, no gargalo do frasco. Por isso, o jacaré fazia parte do processo.
Era uma ferramenta em ferro fundido, com jeitão de jacaré, separada em duas partes longitudinalmente na horizontal. Trocando em miúdos: o jacaré de ferro tinha a parte superior, incluindo-se o rabo, separada do corpo até a altura do pescoço, onde havia uma dobradiça unindo-a à parte inferior (barriga e patas).
Na parte de baixo da parte superior, algumas reentrâncias em forma de meia-lua, com diâmetros de medidas diferentes. Essas meias-luas combinavam com uma réplica delas, existente na parte inferior da estrutura do jacaré. Unidas, formavam um arco.

Para a rolha não ficar “balangando” no frasco, bastava escolher uma com o diâmetro menor do seu cone um pouco acima do diâmetro do gargalo; pegar o rabo do jacaré e erguê-lo, inserindo-se a rolha na meia lua mais adequada. Ato contínuo, era abaixar o rabo do jacaré, comprimir a rolha e, imediatamente, colocá-la no frasco.

A rolha voltaria ao seu estado mais normal, expandindo-se e obstruindo completamente a passagem de ar ou produto.
Algumas vezes, por descuido, comprimi algum dedo em vez de apertar a rolha.
No Museu Histórico e Pedagógico Dom Pedro I e Dona Leopoldina existem dois exemplares desse jacaré de farmácia.
Estão numa vitrine da mostra de mobiliário de época.

Numa recente visita ouvi um atendente explicar o uso do jacaré: “é um antigo peso de papel, com esses encaixes para guardar lápis”.
Pode ser até papo de jacaré, mas achei interessante pinçar esse tempo de minha juventude para ilustrar como é importante existirem informações mais detalhadas, temos de pesquisa, estudos e revisões de informações, troca de conhecimentos, etc, entre profissionais responsáveis pelo atendimento ao público em locais como o Museu.

Aliás, alguns parceiros que estavam comigo nessa visita, estranham muitas salas vazias, sem o rico acervo anteriormente visto.
Além de saber para que serve o jacaré, é importante entender que se ele abrir a boca, engole quem não tem capacidade para administrar quem dá informações ao público...

Vale a pena repensar a informação, enquanto é apenas um objeto em forma de jacaré.
Já pensaram se chega por aí um jacaré sacudindo o rabo e derrubando quem não entende do assunto?
Fica a dica...

É a minha Opinião.
Marcos Ivan de Carvalho
Publicitário e jornalista independente, MTb 36001.